sexta-feira, 5 de dezembro de 2003

Não Há Espaço, Só Elementos e Pedras

2003-11-22
[ Jorge Figueira e Ana Vaz Milheiro ]
in Publico

Não Há Espaço,
Só Elementos
e Pedras

Eduardo Souto Moura fala da sua passagem de obras de pequena escala para a grande dimensão e intervenção no projecto do estádio de Braga e no território na experiência do Metro do Porto. Afirma que ser arquitecto do "star-system" corresponde a uma grande intensidade de trabalho e exigência de qualidade. Não o incomoda a ideia de se contratarem arquitectos do "star-system" para projectos específicos porque "a cidade tem que ter monumentos" e não só arquitectura corrente. Evoca ainda os seus tempos de formação, no escritório de Álvaro Siza, e como a Casa das Artes, que lhe valeu o Prémio Secil de Arquitectura 1993, foi uma reacção crítica ao ambiente cultural da passagem dos anos 70 para os 80, criando uma gramática que se generalizou no seio da arquitectura portuguesa: "Criei uma espécie de manual, que ultrapassou a adesão afectiva e, na altura em que se cristalizou, abandonei-o."

Mil Folhas - Há um grande clima de aceitação da obra do estádio de Braga, nomeadamente, da parte dos responsáveis da UEFA, com a excepção de Miguel Sousa Tavares. Tendo em conta as características da sua arquitectura, ficou surpreendido com a aceitação quase unânime do estádio?

Eduardo Souto Moura - Eu próprio me interrogo por não haver críticas. As coisas boas têm sempre um lado bom e um lado mau e até aqui a população de Braga aderiu e a UEFA fê-lo com grande entusiasmo. Admiro-me de não haver nenhuma crítica e a do Sousa Tavares não é crítica porque ele nunca foi lá.

P.- O que representa a obra do estádio no contexto da sua arquitectura? Vê-a como uma continuidade natural?

R. - Vejo o estádio como uma continuidade no percurso das minhas preocupações. A intervenção da arquitectura na paisagem e na geografia sempre me interessou. Faço as obras com autonomia suficiente e não tenho sempre o álibi do sítio e da integração. Só que aqui há uma ampliação de escala, de tal maneira que essa leitura de continuidade pode ser mais difícil. É tão diferente, em relação às casas de um piso, que parece que é uma coisa completamente nova. Não é, as regras do jogo é que mudaram. O estádio é autónomo, mas tem muito a ver com o sítio.

P.- Pode-se fazer algum paralelo entre esta obra do estádio e o seu trabalho na coordenação do Metro do Porto?

R.- O estádio é uma experiência completamente diferente. O Metro, mais que um projecto, é um laboratório do que entendo que deve ser a arquitectura futura. Numa obra como esta, há uma coisa fundamental: a adesão do dono da obra. Não há nenhuma boa obra sem um bom cliente. Segundo, uma obra desta escala envolve problemas de engenharia que não devem estar separados da arquitectura. Cada vez mais, as sugestões sobre o material e os sistemas construtivos têm de estar ligados à linguagem. Quando há um desenho sobre um território tão vasto, tem de haver uma grande coerência de princípios. Temos o programa, o dono de obra e a engenharia, que tem de ser adaptada à linguagem que o arquitecto pretende.

Digo que é um laboratório, porque foi um espaço em que desenhámos - como aqueles concertos de piano a quatro mãos - peça a peça, engenharia e arquitectura, intensamente e em tempos curtos. De manhã desenhavam os engenheiros; à tarde desenhava eu a arquitectura; à noite fazia-se a maqueta; no dia seguinte, de manhã, reuníamos e decidíamos; à tarde, os desenhos iam para o empreiteiro; à noite, era betonado. O que se falava da conciliação das três artes existiu aqui, não como um processo intelectual, mas porque tinha de ser assim.

P.- O que é surpreendente, tanto no processo do Metro como no estádio, é que mantém sempre a mesma intensidade e cumplicidade que se sente em projectos de outra escala.

R. - Aprendi-o com Siza. Falo do Siza porque trabalhei em Évora [na Malagueira]. Évora nasce - não de um projecto - mas de uma intenção de projecto. Aquilo que me interessou no seu trabalho foi perceber como as coisas se fazem: durante 25 anos Siza foi projectando e as coisas foram acontecendo. Os territórios, a partir de uma determinada escala, não podem ser desenhados. Não se podem desenhar alçados e plantas de cidades. Podem-se prever situações que sabemos irão acontecer. Hoje, a arquitectura não é só desenhar a parte física, é antever as situações e ter uma estratégia. Resulta numa cidade "inteligente", feita por muitas mãos, onde o coordenador é o arquitecto, mas há vários intervenientes.

P.- Estes trabalhos, nomeadamente, o estádio de Braga, servem para se libertar de uma espécie de marca "Eduardo Souto Moura", que existe e que se banalizou?

R. - O primeiro a irritar-se com essa marca fui eu. Não havia projecto algum em que não pedissem pedra e vidro... Mas o problema aqui não é de linguagem, é a alteração de escala. Comecei o meu percurso com casas, primeiro para a família e depois para os amigos. Fiz um esforço para sair dessa escala. Trabalhei imenso no primeiro concurso do Metro do Porto e apercebi-me de que as cidades não mudam, nem por eleições, nem por decisões políticas. Mudam quando há uma necessidade urgente. Eu sabia que o Metro ia alterar as cidades. Preparei as situações para que as coisas acontecessem e os resultados têm sido, pelo menos no caso de Matosinhos, bem sucedidos.

P.- Como é que reagiu quando a sua arquitectura começou a aparecer na obra de jovens arquitectos, criando-se uma espécie de "lugar-comum" da casa com paredes de pedra, planos soltos e vidro?

R. - Senti um certo regozijo, porque era uma confirmação. Senti que o meu trabalho tinha servido para alguma coisa. Criei uma espécie de manual, que ultrapassou a adesão afectiva e, na altura em que se cristalizou, abandonei-o. Pensei "está fechado, portanto, já cumpri essa parte". Serviu-me para dizer: "Agora, tenho que fazer outro." Não por moda, mas só por convicção, porque se tinha esgotado.

P. - Nesse sentido, a "Casa das Artes" foi modelo para uma geração?

R. - Não sei se foi. Para mim, foi o primeiro projecto. A Casa das Artes é o máximo da anulação que a arquitectura pode ter, para não existir. Naquele momento, viviam-se os excessos do pós-modernismo. Achei que a arquitectura precisava de um radicalismo, de não existir, de anular-se. Ainda hoje, há muitas situações em que a arquitectura tem de se anular, ser anónima. Como ponto de partida, de rigor, de crítica a uma situação, foi muito saudável. Não pode é ser tomado como regra. Os arquitectos têm de propor coisas simples, senão não funcionam; mas quando a realidade reage, porque é muito complexa, têm que propor coisas complexas. Ser simples funcionou como uma linguagem com uma certa gramática, mas que só dava para casas-pátio, um piso e com muro. Para lotes estreitos e compridos, com uma casa de três pisos, prefiro encontrar outras linguagens.

P.- Ver a Casa das Artes como uma crítica ao pós-modernismo é uma leitura "a posteriori", ou tinha essa noção quando estava a projectar?

R. - Essas ideias nunca são conscientes, mas tinha uma certa noção que vinha do convívio com o Siza. Tinha, e tenho, uma admiração enorme pelo Siza, mas o seu percurso causava-me impressão. Via-o de manhã a desenhar o SAAL, com o máximo do rigor, e à tarde a desenhar a casa do irmão de Santo Tirso. A minha impressão é a de que o Siza funciona por impulsos, portanto, nele existe uma reflexão muito interiorizada... Tem uma emotividade enorme.

Como não tenho dotes artísticos, para encontrar uma coerência, o meu percurso tinha de ser conquistado através do estudo. Durante o curso, dava explicações de filosofia e lia tudo. Na época, trabalhava muito pouco em arquitectura. A escola estava fechada e os meus colegas estavam todos em escritórios, mas só fui trabalhar com o Siza no quarto ano.

A Casa das Artes foi uma reacção; eu não sabia o que era o minimalismo. Entretanto, no escritório discutia-se muito. Lembro-me de uma conferência sobre o Alvar Aalto que o Siza me pediu para fazer na Gulbenkian. Quando lhe disse, com um certo radicalismo juvenil, que achava que a saída não era o expressionismo, nem o organicismo, ficou escandalizado. Siza perguntou-me qual era o arquitecto que eu gostava. Respondi-lhe que era o Mies van der Rohe.

P.- No nosso país começa a haver um desconforto generalizado com a ideia de um "star-system" de arquitectos. Reconhece-se dentro desse "star-system"? Acha que também tem aspectos benéficos, porque corresponde a um reconhecimento da importância da arquitectura?

R. - Sei que não sou um desconhecido, mas também não sei se sou do "star-system", porque não fiz nada para isso. Mas acho que o "star-system" tem algumas vantagens, não acontece por acaso. Implica uma vida de dedicação ou, então, transforma-se - e penso que não é o caso dos arquitectos portugueses - numa hipocrisia, um vedetismo bacoco. Portanto, obriga a uma qualidade, a uma intensidade de trabalho.

P.- Chamar um arquitecto, como Frank Gehry para fazer o Parque Mayer, em Lisboa, por exemplo, incomoda-o?

R. - Não me incomoda, porque há um outro aspecto que não tem sido falado: a cidade tem de ter monumentos e residências, é uma hierarquia. Foi sempre assim, a história da arquitectura fez-se por "Bruneleschis" e por "Berninis" que desenharam os monumentos e a residência era feita por massa anónima. Só massa anónima também não é cidade, falta-lhe hierarquia. E o contrário é ridículo, porque resulta numa bienal, um "boulevard" cheio de vedetas. Portanto, não acho contranatura. O importante é que isso não se transforme numa regra.

Pode-se levantar outra questão, que não tem nada a ver com a arquitectura; tem a ver com o lado social da arquitectura. Devem fazer-se estádios? Aceitei o de Braga, mas como cidadão acho que há coisas mais importantes. Devem chamar-se os "Gehrys"? Prefiro que o Gehry faça o Parque Mayer do que este seja entregue a algum curioso. Mas como cidadão acho que Portugal tem outras necessidades mais emergentes. Uma coisa é a qualidade intrínseca da disciplina e a outra é a disciplina inserida no ambiente social, cultural e urbano.

P.- Quando recebeu o Prémio Pessoa afirmou que isso lhe criava condições para ter uma posição mais interveniente, em termos culturais. Mas isso não se verificou, a não ser que consideremos a sua arquitectura como uma forma de intervenção.

R. - Quando fiz essa declaração não me transformei num comentador, preferi fazer ao contrário. O prémio deu-me acesso à mudança de escala. E, portanto, não fiz um discurso oral ou escrito, fiz um discurso da própria disciplina. Usei o meu método no estádio e nas outras obras. Pontualmente, quando preciso de falar, falo.

P.- Acha que nos últimos 10 anos a situação da arquitectura em Portugal tem evoluído?

R. - A mim mudou-me muito. E acho que a arquitectura também. O arquitecto é, cada vez mais, uma figura da nossa sociedade. Não há jornal nenhum que se folheie que não tenha uma notícia sobre arquitectura. Isso deve-se ao Taveira, que, quer se goste, ou não, foi quem lançou o arquitecto como uma figura pública. Antes a arquitectura era uma disciplina desconhecida. Com as Amoreiras, houve essa inversão. Assim como com o Siza, no Chiado.

P. - O que é interessante verificar no seu percurso é uma articulação entre um certo pragmatismo, à "Escola do Porto", e referências ao mundo literário, artístico e filosófico. Como é que gere esse conflito?

R. - Se os meios mudam, a acção muda. A cultura do Távora ou a do Siza nunca pode ser a cultura do João Luís Carrilho da Graça, por exemplo. Lembro-me de discutir com o Siza, quando andava entusiasmadíssimo com o Herberto Helder, que, para os meus problemas, tinha mais a ver comigo. O Siza preferia o Cesário Verde e o Távora tinha o Fernando Pessoa e os seus heterónimos. Para resolverem os seus problemas, cada um vai buscar os seus meios. O Távora vem dos homens que o marcaram: Le Corbusier, Bruno Zevi e Lúcio Costa. O Siza também passou uma época de grande suporte teórico. O Alvar Aalto foi uma figura de sustentação, dava saída à "não-saída" do Movimento Moderno. Depois, a produção da arquitectura começou a esvaziar-se do ponto de vista do suporte teórico. Eu já não tinha essa fundamentação: o Venturi punha tudo em causa. Nessa época, a última coisa importante, e que era muito subjectiva, era a autobiografia científica do Rossi e a "Arquitectura" do Donald Judd. Portanto, enquanto os arquitectos faliam do ponto de vista da produção teórica, de como projectar, os escritores ensinavam como escrever, os pintores como pintar, os músicos como fazer música... Encostei-me um pouco aos outros porque eram mais claros.

Mas o pós-modernismo acabou de uma maneira encapotada. O neomodernismo é uma espécie de pós-modernismo, porque as pessoas aderem por gosto. O Portoghesi faz cornijas porque gosta de cornijas; o Foster faz panos de vidro virados a sul porque gosta de vidro. E a postura é a mesma, porque a cornija não é precisa para nada e o pano de vidro também não.

P. - Quando na Casa das Artes utiliza o espelho como dispositivo ficcional, não se trata também de uma colagem pós-moderna?

R. - Não quero filosofar ou teorizar a minha arquitectura, mas acho que isso faz parte da cultura contemporânea. Não se pode esquecer o existencialismo e o fim da metafísica. O Herberto Helder ou o Heiddegger explicam isso muito bem. O espaço não existe, só existe o tempo. Só existe o espaço nos próprios elementos físicos: o muro é o espaço - não há espaço entremuros. Há, depois, através das sensações. Quando fiz a Casa das Artes não podia usar o Vignola, nem o princípio da composição, e a chamada "proporção" também não tinha sentido. O que eu tinha eram muros, pilares e depois a intuição de que entre estes se tinha que passar alguma coisa. Portanto, manipulava-os como cenários, com espelhos, com cores... Não há espaço, só elementos e pedras.

P. - Ainda continua a escrever o seu "caderno das citações"?

R.- Continuo. É um hábito antigo. É sempre o mesmo, não há assim frases tão boas todos os dias.

P. - Fazer um diário de citações significa que não é possível reproduzir uma narrativa linear moderna...

R. - O que eu gosto do modernismo é precisamente o lado superficial porque, neste momento, a coerência, a postura modernista heróica, de mudar o mundo, acabou. Ficaram o vidro, o ferro, os painéis e o sistema. Não é pejorativo, pelo contrário, é o que a arquitectura deve utilizar.

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