quarta-feira, 26 de novembro de 2003

2003-11-23 Quarta-feira
[ HELENA ROSETA ]
in Público

A Arquitectura
em
Tempo de Viragem


Depois de um Ano Nacional dedicado ao Direito à Arquitectura, reúne-se esta semana, com o mesmo lema, o Congresso dos Arquitectos. Passaram cem anos sobre a criação da primeira organização associativa de arquitectos e arqueólogos, em que pontificava Possidónio da Silva. Foi enorme o caminho percorrido. Gerações sucessivas de arquitectos ajudaram a construir a nossa identidade. Hoje, arquitectos portugueses são reconhecidos e projectam Portugal no mundo inteiro. Mas, na última década, a profissão modificou-se profundamente. Dois terços dos 11 mil arquitectos inscritos na Ordem têm menos de 40 anos. Esta percentagem, a norte do país, chega aos 80 por cento.

A esta explosão demográfica não correspondeu nenhuma alteração das políticas legislativas com impacto na arquitectura. A qualificação profissional exigível aos autores de projectos não foi alterada, apesar do êxito da petição entregue na Assembleia para revogar o velho decreto 73/73, que permite a não licenciados em arquitectura fazer projectos. Não existe, ao contrário do que acontece noutros países europeus, uma política nacional de arquitectura. Nem sequer temos, na estrutura do Governo, um interlocutor com quem debater as questões da arquitectura, como existe para o sector da saúde ou da justiça. É evidente que há matérias que são sempre transversais. Mas a ausência de um rosto ajuda a manter a ausência de uma responsabilidade.

Nuno Teotónio Pereira, uma das grandes referências da arquitectura portuguesa, apresenta ao próximo congresso uma comunicação em que compara o Congresso dos Arquitectos de 1948 com a situação actual. Em 1948, um grupo de jovens arquitectos revoltou-se contra a imposição pelo regime salazarista de um estilo "nacional". E partiram, sob o impulso de Keil do Amaral, à descoberta da arquitectura popular, procurando um saber antigo e essencial, onde as formas habitadas nascem da relação entre o homem e o meio. Hoje, diz Teotónio Pereira, a liberdade de expressão arquitectónica não está ameaçada pela ditadura política mas pela ditadura do mercado. O que se vende, diz ele, é uma arquitectura medíocre, que não pode deixar de afectar a qualidade de todo o tecido urbano. Ou então, acrescento eu, o nome de grandes arquitectos é usado para alavancar operações imobiliárias e tornear procedimentos legais. O resultado não favorece a cidadania.

Se até agora os arquitectos podiam esconder-se na culpa alheia para não assumir a sua quota parte no estado das nossas cidades, periferias e paisagem, a já prometida revogação do decreto 73/73 vai trazer-nos responsabilidades acrescidas. Só isso bastaria para fazer deste congresso um marco importante para uma nova etapa na arquitectura em Portugal.

Mas há muito mais a fazer: abrir o debate sobre a arquitectura a todos os cidadãos, no espírito do "direito à arquitectura" que vimos defendendo e que implica a possibilidade de toda a gente usufruir de espaços bem pensados para habitar, trabalhar, resolver os problemas do seu dia-a-dia ou simplesmente passear; manter um elevado nível de exigência profissional e deontológica; cooperar com as outras ordens e parceiros associativos, nomeadamente as associações empresariais da construção civil, para melhorar a qualidade da arquitectura, da construção e do ambiente urbano; aumentar a capacidade de resposta qualificada na área do urbanismo, através do Colégio de Especialidade e em diálogo com os restantes profissionais do sector; avaliar criticamente o ensino da arquitectura e as provas de admissão à Ordem, que este ano se realizaram pela primeira vez com uma taxa de reprovação de 95 por cento; mudar o actual sistema de entrada na Ordem por forma a que as provas de admissão tenham lugar no fim e não no princípio do estágio; enfim, melhorar os processos de regulação interna da profissão, sem esquecer que o objectivo final deve ser sempre a promoção e defesa da arquitectura como um direito, um serviço e um bem a que os cidadãos devem ter acesso. A criação da figura do provedor da Arquitectura, no espírito do provedor do cliente há dias defendido neste jornal por Vital Moreira, será uma inovação a realizar desde já.

A arquitectura é um recurso nacional, tanto mais relevante quão difíceis são os tempos. Não podemos desperdiçar meios. A capacidade criativa e o talento dos arquitectos são cada vez mais necessários. Há que trazer valor acrescentado a um sector económico, o da construção civil, que está a atravessar uma crise recessiva e que precisa de se reformular. Há que contribuir para melhorar o estado do ambiente urbano e do território. Há que tornar mais transparentes os circuitos de decisão no processo imobilário e na distribuição da encomenda pública. Há que desenhar um modelo sustentável de desenvolvimento para Portugal, que valorize os nossos recursos sem delapidar o futuro. É o momento de os arquitectos se voltarem a mobilizar, como fizeram em 1948, pela liberdade de expressão e pelo interesse público. Acrescentando-lhe, em pleno século XXI, as novas formas de defesa da cidadania, de que essa liberdade é condição imprescindível e que o interesse público exige.

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